3 de maio de 2012

Confundir o prazer com felicidade…

O erro mais comum é confundir o prazer com a felicidade. O prazer, diz
um provérbio hindu, “é somente a sombra da felicidade”. É o resultado
direto dos estímulos prazerosos no âmbito sensual, estético ou
intelectual. A fugaz experiência do prazer depende de circunstâncias,
de um lugar específico ou de um momento no tempo. É instável por
natureza e a sensação evocada logo se torna neutra ou até
desagradável. Da mesma maneira, se for repetida, pode tornar-se
insípida ou até levar à repulsa. Saborear uma refeição deliciosa é uma
fonte de prazer genuíno, mas ficaremos indiferentes a ela assim que
estivermos satisfeitos e poderemos até nos sentir mal se continuarmos
a comer. [...]
O prazer se exaure com a rotina, como uma vela que consome a si mesma.
Ele quase sempre está ligado a uma ação, uma atividade e leva ao tédio
pelo simples fato de repetir-se. Ouvir em êxtase um prelúdio de Bach
requer uma atenção que, por menor que seja, não pode ser mantida
indefinidamente. Depois de um tempo, o cansaço entra em cena e a
música perde seu encanto. Se fôssemos forçados a ouvi-la por dias e
dias, iria tornar-se intolerável.
Além disso, o prazer é uma experiência individual, centrada no eu, que
pode com facilidade deteriorar-se em egoísmo e entrar em conflito com
o bem-estar dos outros. Na intimidade sexual é claro que pode haver
prazer mútuo no dar e receber sensações prazerosas, mas esse prazer só
pode transcender o eu e contribuir para a felicidade genuína se a
natureza da mutualidade e do altruísmo generoso estiver no seu âmago.
É possível sentir prazer à custa de outra pessoa, mas isso não traz
felicidade. O prazer pode estar associado à crueldade, à violência, ao
orgulho, à ganância e a outras condições mentais que são incompatíveis
com a verdadeira felicidade. “O prazer é a felicidade dos loucos,
enquanto a felicidade é o prazer dos sábios”, escreveu o romancista e
crítico francês Jules Barbey d’Aurevilly. [...]
Diferentemente do prazer, o florescer genuíno de sukha [sânscrito:
felicidade ou bem-aventurança] pode ser influenciado pelas
circunstâncias, mas não depende delas. Ele perdura e aumenta com a
experiência. Gera um sentimento de plenitude que, no tempo devido, se
torna uma segunda natureza.
A felicidade autêntica não está ligada a uma ação, a uma atividade,
mas é um estado de ser, um profundo equilíbrio emocional decorrente de
uma sutil compreensão do funcionamento da mente. Enquanto os prazeres
ordinários se produzem no contato com objetos agradáveis e terminam
quando esse contato se interrompe, sukha — o bem-estar duradouro — é
sentido ao longo de todo o tempo em que permanecemos em harmonia com
nossa natureza interior. Um aspecto intrínseco desse bem-estar é o seu
altruísmo, que irradia do interior do ser, em vez de focalizar-se no
eu. Quem está em paz consigo mesmo contribui espontaneamente para
estabelecer a paz em sua família, em sua vizinhança e, se as
circunstâncias permitirem, na sociedade como um todo.
Em resumo, não há relação direta entre o prazer e a felicidade. Essa
distinção não significa que não se deva buscar sensações agradáveis.
Não há razão para nos privarmos do deleite diante de uma paisagem
magnífica, da sensação de nadar no mar, do perfume de uma rosa, da
doçura de uma carícia ou da beleza de uma melodia. Os prazeres
tornam-se obstáculos somente quando perturbam o equilíbrio da mente e
nos levam à obsessão por gratificações ou a uma aversão a tudo que
possa impedi-las.

Matthieu Ricard (França, 1946 ~)

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