31 de julho de 2008

A arte do cozimento

Coloquemos num grande caldeirão de ferro, contendo bastante água pura de mina, um pouco de praticamente tudo o que é vegetal (todos orgânicos, é claro!): inhame, cenoura, cará, repolho, salsa, vagem, aipo, mandioca, alho poró, feijão, cebola, batata, alecrim, couve, quiabo, brócolis, chuchu, abóbora, nabo, manjericão, beterraba, alho, tomate, etc, etc, etc... Cada novo vegetal que vamos introduzindo no caldeirão tem seu próprio aroma, sua textura, sua cor e seu sabor. Por fim, um pouco de sal (muito pouco) para funcionar como uma espécie de animador e incentivador de todas essas qualidades.
O fogo põe-se a crepitar sob a base espessa do caldeirão. Decorrido algum tempo, começa a haver uma certa tremulação geral, um estado de excitação, um frenesi: a água borbulha e os vegetais se inquietam.Quanto mais aumenta a temperatura, mais a energia circula entre os participantes do cozimento geral, e quando a energia circula os intercâmbios tornam-se inevitáveis. Um pouco do sabor do alecrim penetra no inhame que torna-se, então, “alecrinizado”. Um pouco da cor do tomate impregna a mandioca que fica, digamos, levemente “tomatizada”. Do inhame alecrinizado despregam-se algumas partículas que acabam se encontrando com as da batata “arrepolhada”. Assim, todas as texturas, cores e sabores originais acabam cedendo algo de si e contribuem para a composição do caldo grosso que é a sopa que se anuncia.Como no início pusemos muita água e mantivemos o fogo brando, há muito tempo ainda pela frente até que tudo isso fique pronto (na verdade, é difícil podermos determinar com precisão o momento dessa prontidão).De qualquer modo, por precaução, mantenhamos uma grande chaleira de reserva com água em aquecimento para que a agreguemos, de quando em quando, ao caldo, caso ele se torne demasiadamente denso. É absolutamente necessário que prolonguemos ao máximo o tempo de cozimento.Atenção: esta sopa não está sendo feita para ser comida, embora não haja nenhuma razão para não fazê-lo. Seguramente ela ficará saborosa, não há nada que possa nos fazer suspeitar do contrário.O que se pretende é que o cozimento sirva como uma espécie de instrumento para estimular nossas reflexões sobre a vida, o amor e a morte.Olhemos, então, com atenção para a sopa que está se fazendo. É bem possível que o Universo no qual surgimos seja uma espécie de caldeirão borbulhante como este à nossa frente e que cada um de nós seja como um dos vegetais dentro da sopa. Já é bastante comum ouvirmos falar da concepção de que o Universo inteiro é um único ser vivo e não que ele apenas contenha seres vivos, uns aqui, outros acolá (os biólogos, os químicos e os físicos mais atrevidos de hoje em dia são muito inclinados a pensar assim). Se o Universo for mesmo isso, o que é o conhecimento, como ele acontece? Eu sou, digamos, como um vegetal dentro da sopa geral. Estou imerso desde sempre e participo junto com todos os outros vegetais dessa dança fervilhante. Isso vale também para os meus ancestrais e os ancestrais dos ancestrais, que podem ser minúsculas moléculas orgânicas ou mesmo inorgânicas (aliás, é essa diferença que os estudiosos do assunto andam pondo em questão).Se sou, por exemplo, um inhame, “conhecer” é, então, como alecrinizar-me, tomatizar-me, cenourizar-me. Deixar-me, enfim, impregnar pelos outros aromas, cores e sabores.Os mais resistentes dirão: mas, se é assim, eu deixo de ser inhame, que é o que de fato “eu sou”? Os mais flexíveis responderão: nunca se esqueça de que você não foi sempre inhame, que antes de ser inhame você foi terra e, além disso, do estado terra para o estado inhame você “foi sendo” muita coisa.Conhecer é, então, transformar-se. É alquimia pura. É doar cores, aromas e texturas mas, também e ao mesmo tempo, recebê-los sem cessar. Conhecer é não resistir, é perder sempre para ganhar sempre mais.Nenhum conhecimento está fora de nós, ele só se consuma quando nos impregnamos daquilo que recebemos da sopa dançante, e, no mesmo instante em que o fazemos, já não somos mais os mesmos: morremos para imediatamente renascer. Entretanto, para receber é preciso haver espaço. Por isso doamos.Não há como manter-se fixo onde tudo fervilha e flui. Podemos tentar permanecer, com todas as forças de que dispomos, numa única posição. Congelar o ego, defender ardorosamente um único ponto de vista. Tentar manter o mesmo aroma, a mesma cor e o mesmo sabor. Entretanto, quando fazemos isso nós encruamos. É aquele inhame que não cozinha, fica duro.Mas o fogo é brando e o tempo é vasto. Mesmo os mais petrificados irão cozinhar inevitavelmente. Esse é o destino dos componentes do caldeirão: doar tanto e receber tanto que todas as identidades se dissolverão, um dia, num único caldo. Todas as coisas aparentemente separadas percebem-se, enfim, como a mesma coisa: a grande Sopa.Olhemos de novo para o caldeirão onde o cozimento segue seu curso. Essa transmutação incessante que borbulha diante de nós vai revelando algo que já poderíamos ter suspeitado antes: conhecimento é, então, amor. Amor é a energia que entrelaça e vincula todas as coisas. Que faz tudo permanecer dentro do caldeirão, dançando e transmutando.Para intercambiar cores, aromas e sabores é preciso estar aberto, receptivo, disponível atento, flexível. É preciso sintonizar, sincronizar, concordar, conceder, confiar, consentir. Desvestir para revestir. Decompor para recompor. Tudo isso são atributos do amor.Quem resistir encrua, quem aceitar cozinha. Os encruados ficam estagnados por tempo indeterminado, os bem cozidos integram-se na evolução da sopa. Ganham um novo sabor. Um novo estado de consciência.
Taunay Daniel

Nenhum comentário: